terça-feira, 23 de setembro de 2008

Reservas indígenas e racismo

Por Adriano Benayon

Não deverá prevalecer – e é isso que a integridade da Nação exige – o voto do ministro relator no julgamento, em curso, sobre a demarcação da reserva da Raposa Serra do Sol. Além de não fulminar a insensata demarcação em faixa contínua, aquele voto faria expulsar todos os “não-índios” da extensa área de mais de 17 mil quilômetros.

Há ali mais de 450 famílias “não-índígenas”. Que se pretende fazer com elas, se não uma operação de limpeza étnica, no pior estilo que as potências hegemônicas vêm realizando nos Bálcãs? Ademais, impõe-se a pergunta: que quer dizer “não-índio”? Será uma questão de etnia? Nesse caso, admitir a distinção atenta contra a Constituição.

Art. 3º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: .... IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Art. 5º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade.” “Inciso XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; Inciso XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.”

O voto do ministro relator faz de conta que esses dispositivos pétreos da Constituição não existem e também que a Lei Afonso Arinos foi revogada. O artigo 5º da CF trata dos direitos e liberdades fundamentais. Ora, o assentamento de famílias ditas não-índias na área da Serra é evidentemente anterior ao absurdo decreto de 15.04.2005, que confirmou a ilegal portaria de 13.04.2005 do Ministério da Justiça. De resto, o assentamento seria lícito, mesmo que fosse posterior ao decreto.

Ademais de odioso, determinar a erradicação de famílias que vivem e produzem em território pátrio, significa estarem as autoridades que assim procedem sendo vítimas da perniciosa lavagem cerebral portadora do racismo inculcado pelas potências hegemônicas, ávidas de tornar absoluto o controle que já exercem sobre populações ditas indígenas, por intermédio de ONGs, Conselhos de Igrejas e outras entidades.

Um indivíduo pode ser de origem genética 100% “indígena” e não desejar viver segregado pela fronteira da demarcação. Ainda que não fossem maioria os “índios” que querem viver e produzir como brasileiros integrados à comunidade nacional, seus direitos humanos têm de ser respeitados, inclusive o de escolher seu modo de vida. Ironicamente, os defensores da reserva segregada dizem defender direitos dos indígenas.

É inaceitável aplicar o critério étnico para amputar do território nacional áreas enormes e riquíssimas em minérios estratégicos e preciosos. Toda a lógica das demarcações em faixa contínua converge com o que dispõe a Declaração dos Direitos Indígenas, aprovada pela Assembléia-Geral da ONU, sobre a autodeterminação de comunidades indígenas, obviamente a ser regida por potências estrangeiras.

É preciso acabar de vez com o vírus do racismo, importado em meio à dominação econômica e cultural das potências hegemônicas, vírus que proliferou dentro das mentes locais globalizadas no pior dos sentidos: o de introjetar os valores imperiais como sujeito passivo destes.

Desde as revoluções norte-americana e francesa, da 2ª metade do Século XVIII, pertencer a uma nação deixou de ser estar vinculado à soberania de “direito divino” dos monarcas. Passou a decorrer de um ato de vontade por parte de quem se constitui cidadão de uma comunidade nacional. Como assinalou Ernest Renan, não é a raça, nem a língua, nem a origem cultural, que determina a nacionalidade, mas, sim, o desejo de formar uma sociedade sob valores respeitados em comum.

Esse é o direito. Se o Brasil quiser que o direito seja respeitado, tem de fortalecer-se, começando pela autonomia em matéria econômica, sem o que não estará em condições de defender seus territórios, nem quaisquer outros direitos. Não há na economia, em si mesma, coisa alguma que o impeça. A decisão para construir estruturas de mercado e tecnológicas próprias é a mesma que está na manifestação de vontade de ser uma Nação. Essa manifestação tem de ser permanente, diária. Não é apenas recordar um evento histórico, como o de 7 de setembro de 1822.

Adriano Benayon é Doutor em Economia. Autor de “Globalização versus Desenvolvimento”, editora Escrituras.

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