Não há sentido em manter enorme reserva contínua em zona de fronteira, ainda mais quando 40% do território é ocupado por indígenas
Da UnB Agência
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento sobre a reserva Raposa Serra do Sol na próxima quarta-feira, dia 10 de dezembro. Cabe aos ministros do STF decidir se a reserva indígena localizada em Rondônia permanece como área de terra contínua ou se a demarcação passa a ser no formato de ilhas, como sugere projeto dos senadores Augusto Botelho (PT-RR) e Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR).
– A delimitação contínua é um equívoco, principalmente se for estabelecida como padrão – considera o professor Pio Penna Filho, pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).
Penna não recomenda manter enorme reserva de terra contínua em zona de fronteira, principalmente em um estado onde 40% do território é ocupado por indígenas. Em entrevista, o especialista diz que a demarcação de reservas contínuas é uma questão de soberania nacional e deve ser tratada com mais atenção pelo Brasil. Ele considera, contudo, que as reivindicações de base étnica são autênticas e legítimas.
Para Penna, a questão dos indígenas brasileiros se insere em um contexto internacional de discussão acerca dos direitos humanos e das minorias "que foram abafados durante boa parte do período da Guerra Fria e por questões nacionalistas". Segundo o professor, houve uma redefinição do papel do Estado, que abriu espaço para o crescimento do tema. Ele alerta que o debate sobre os direitos das minorias foi internacionalizado e isso pode agravar a situação local de cada país.
O caso da reserva Raposa Serra do Sol, no norte de Rondônia, está sendo bem conduzido?
Não. Manter uma reserva de terra contínua enorme em uma zona de fronteira não é recomendável, ainda mais em um estado onde 40% do território é ocupado por indígenas. Além do mais, toda a história do laudo dessa reserva Raposa Serra do Sol é controversa. A delimitação é um equívoco, principalmente se for estabelecida como padrão. O problema é que ninguém nunca levou a Funai a sério. A política da fundação é boa, mas ela não tem recursos, ou seja, a questão não deve ser reduzida exclusivamente a demarcação de terras.
A reserva expõe a fronteira brasileira?
O problema de fronteira é um agravante, mas a questão é principalmente de soberania nacional, embora não se restrinja a isso. Há reivindicações parecidas em outras regiões. No Mato Grosso do Sul, que começa a enfrentar esse problema agora, o estabelecimento de reservas afetará áreas produtivas. O estado, inclusive, já começou a tomar medidas preventivas, pois caso se confirme a reserva de terras, a economia do Mato Grosso será afetada. E há problemas também nas zonas de fronteira. Entre Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bolívia e Paraguai existem movimentos que estão "produzindo" indígenas, principalmente chiquitanos, um povo da região que já passou por inúmeros processos de integração com as sociedades que se estabeleceram posteriormente em suas áreas originais.
Como lidar com o fato de que a busca por autonomia e terras envolve interesses além da questão étnica?
A coisa realmente se torna complexa quando nós observamos os interesses de fora que entram nessa questão. O que os militares brasileiros alegam, por exemplo, é que o território amazônico possui uma série de recursos naturais que serviriam de pano de fundo para a disputa territorial no norte do país, devidamente escamoteada na questão da preservação ambiental. E de fato existem ONGs internacionais com segundas intenções. E há outros exemplos, como o que acontece na região dos Cintas Largas, em Rondônia, onde há exploração ilegal de madeira e ouro e pouca ou quase nenhuma fiscalização. Eu mesmo já estive na região e não é segredo para ninguém de lá o que aconteceu e, com menos intensidade, ainda acontece nas terras dos Cintas Largas. Tudo o que sai de lá vai para fora sem fiscalização. Nessa região é pior ainda, porque é uma fronteira mais aberta. O estado não consegue controlar completamente a região, que é habitada por índios hi-tech. Eles têm uma série de equipamentos eletrônicos, inclusive telefones via satélite, e são permanentemente assediados por estrangeiros e organizações não-governamentais de diferentes matizes.
O que explica o surgimento de tantos movimentos sociais de base étnica ao redor do mundo?
No final do século 20, as relações internacionais retomaram a discussão acerca dos direitos humanos e das minorias, que foram abafados durante boa parte do período da Guerra Fria e por questões nacionalistas. Recentemente houve uma redefinição do papel do Estado, que abriu espaço para o crescimento do tema. Isso teria aparecido com mais força não fosse a "luta mundial" contra o terror, que interrompeu boa parte da agenda social. De uns anos para cá, houve o renascimento dos movimentos indigenistas, que tinham sido praticamente suprimidos durante as décadas de 1960 e 1970. À época, a Bolívia, por exemplo, chegou inclusive a abolir o termo "indígena", transformando os índios em "camponeses", com a intenção de integrá-los com os outros habitantes do país.
A interferência de organismos internacionais nesses casos é saudável?
Nem sempre. O reconhecimento de Kosovo como Estado independente, que foi feito em parte com base na questão étnica, feriu os princípios que dizem que compete ao Estado nação tratar de suas minorias. Isso abriu a porta para uma série de reivindicações. Os casos da Ossétia do Sul e da Abkházia, na Geórgia, estão nesse mesmo plano. O debate sobre os direitos das minorias foi internacionalizado e pode agravar a situação local de cada país. Há movimentos transnacionais, como o conselho indigenista missionário da Igreja Católica, que tratam de vários temas de forma bastante semelhante, mas cada caso é único.
Podem surgir outros estados baseados no argumento originário em breve?
Sim. Na Europa, alguns governos têm tratado a questão com muito cuidado. Como os espanhóis vão fazer com os bascos? O problema é de dimensão mundial. Dependendo de como as coisas acontecerão, há a possibilidade real de que sejam criados novos Estados. E de uma hora para outra. Todas as condições estão reunidas. O índio que vive no Brasil, por exemplo, não é brasileiro, ou pelo menos não costuma ser tratado como tal. Possui uma língua, uma cultura e um território próprios. O problema é que essas questões são conduzidas de forma muito confusa. Não há um parâmetro. Ninguém sabe o que vai acontecer. A tendência é que as reivindicações se alastrem. Os Estados Unidos também já lidam com o tema. Na Bolívia, já se falou até em se criar um estado em Santa Cruz de la Sierra, o que iniciaria um movimento capaz de fragmentar o país. Na África, esses movimentos são uma tendência permanente. No caso do Brasil, na Amazônia, eles podem se transformar em um problema político enorme.
As reivindicações com base étnica são legítimas?
Elas são autênticas e os problemas já deveriam ter sido tratados antes. São reivindicações legítimas, porque esses povos minoritários foram os mais afetados pelo processo histórico. Não é uma unanimidade a existência de uma dívida histórica, mas toda a confusão recente na Bolívia, por exemplo, decorre disso. A parte indígena quer imprimir um ritmo indígena à sociedade boliviana. Um caso muito grave em andamento – e que tem relação com Raposa Serra do Sol pelo princípio da demarcação de terras indígenas e do direito dos povos indígenas sobre essas terras – é a dos mapuche no Chile. São povos indígenas originários de regiões do que é hoje o Chile e a Argentina. Eles estão querendo criar um Estado nação mapuche, mas enfrentam resistência do governo chileno. São questões que precisam ser enfrentadas. Os australianos ficaram sob pressões enormes quando surgiu essa questão nos anos 1990. Eles pediram desculpas várias vezes aos aborígenes e ampliaram seus direitos. Só que os australianos têm um déficit demográfico muito alto. Não são áreas sensíveis internacionalmente como a Amazônia. Ninguém quer saber do deserto australiano.
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