No julgamento em que oito dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal consolidaram o entendimento de que as terras indígenas devem ser demarcadas de forma contínua, com base no artigo 231 da Constituição – a partir do caso-piloto da reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima – não mereceu o devido realce o fato de que a Corte está para fixar um importante regime jurídico destinado a nortear as futuras demarcações. E que tal regime, delineado nas "condições" propostas pelo voto do ministro Menezes Direito, não trata apenas dos direitos dos índios mas também dos seus deveres como detentores da posse (e não do domínio) de terras pertencentes à União.
Antes de especificar as 18 condições aprovadas, com pequenas ressalvas, pelos outros sete ministros que já se pronunciaram – inclusive o relator, Ayres Britto – Menezes Direito ressaltou: "O usufruto do índio sobre a terra indígena estará sujeito a restrições, sempre que o interesse público e de defesa nacional estejam em jogo". Ou seja, a salvaguarda dos direitos dos índios não pode levar a uma interpretação de mão única do dispositivo constitucional básico referente ao tema, segundo o qual "são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens".
A teoria do beau sauvage de Rousseau – o homem, em seu estado natural é bom, sendo paulatinamente corrompido pela "sociedade civilizada" e pelas próprias instituições estatais – deixou de ser axiomática há muito tempo, num mundo cada vez mais globalizado. O próprio ministro Direito citou práticas condenáveis de não-índios assimiladas e adotadas, em áreas demarcadas, por tribos em grande parte aculturadas, como, por exemplo, o fechamento de estradas e a cobrança de pedágios. Fez constar da lista de restrições – que não foram do agrado de certas "lideranças indígenas" – que "o ingresso, trânsito e permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas". E recomendo também que cobranças desse tipo sejam exigidas em troca do uso de linhas de transmissão de energia "ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocados a serviço do público".
Pela primeira vez em sua história, o tribunal não se limitou a tratar da legitimidade da demarcação de terra indígena. Disse o que pode e o que não pode ser feito em relação ao uso dos bens públicos, à situação peculiar das faixas fronteiriças e à preservação de santuários ambientais.
Vale ainda destacar a intervenção do ministro Cezar Peluso, que deixou claro o caráter de simples "exortação" da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 2007, com a adesão do Brasil. Segundo Peluso, o STF deve proclamar "a completa inoperância jurídica" dessa declaração, que não tem o status de tratados e convenções internacionais. Portanto - ao contrário do que dizem indigenistas radicais - a declaração não tem abrigo no parágrafo 3º do artigo 5º da Carta, que eleva à condição de emenda constitucional "os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos". A declaração na ONU, entre outros polêmicos enunciados, afirma que "os povos indígenas têm direito à autodeterminação".
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