Corte discutirá se índios comprovadamente aculturados precisam de reservas como se fossem tribos nômades
Mariângela Gallucci
A retomada no Supremo Tribunal Federal (STF), amanhã, do julgamento sobre a reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, vai abrir uma discussão constitucional sobre os conceitos que a Fundação Nacional do Índio (Funai) usa para fazer as demarcações das terras indígenas. Os 11 ministros vão discutir se índios comprovadamente aculturados precisam de reservas para caçar e praticar a agricultura como se fossem tribos nômades. Podem emergir do julgamento, portanto, novos conceitos jurídicos e sociais para a demarcação de reservas indígenas.
"É natural que se tenha uma discussão além do caso concreto", admitiu ontem o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, durante viagem a Montes Claros (MG) e Teresina (PI), onde lançou um programa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) denominado Casas de Justiça e Cidadania - cujo objetivo é prestar assistência social e jurídica à população.
Há quase um consenso entre os ministros do STF de que a demarcação da Raposa Serra do Sol tem uma série de erros e exageros na maneira como trata os índios, mas não existe disposição de anular todo o processo. A direção da Funai, por meio de sua assessoria de imprensa, disse ontem que "segue e faz o que manda fazer a Constituição". E a Constituição, acrescentou a assessoria, "diz que a demarcação de terras indígenas é uma política do Poder Executivo".
Segundo ministros ouvidos na semana passada pelo Estado, é possível que o Supremo construa uma saída para o caso da reserva em Roraima e oriente as demarcações futuras - o que interessa especialmente a Mato Grosso do Sul. Vai ser discutido, também, o poder da Funai para decidir sozinha as demarcações que envolvam direitos federativos de Estados e municípios. O governador de Roraima, José de Anchieta Júnior (PSDB), diz que "é preciso fazer mudanças, porque não se pode deixar esse poder nas mãos de uma pessoa só". Anchieta sugere que os processos de demarcação de terras tramitem no Congresso como projeto de lei e sejam votados por deputados e senadores.
Um ministro do Supremo chegou a dizer ao Estado que a Funai se recusa a levar em conta a relação dos índios com os não-índios e encara a demarcação "como se estivesse apenas criando cercas de proteção, como se estivesse implantando zoológicos de preservação, uma política que os índios rejeitam". O pior, na visão desse ministro, é que a Funai "faz as cercas, fica em paz com as organizações não-governamentais, mas depois abandona os índios e oferece uma assistência precária".
"É a primeira vez que o STF se debruça, pós-1988, com profundidade sobre esse assunto (demarcação de terras)", disse o presidente do Supremo. Segundo ele, a decisão do tribunal será cumprida. "Não haverá resistência à decisão. Podemos ter aqui ou acolá críticas à decisão, mas, certamente, ela será cumprida."
Há ainda grande preocupação com o fato de a reserva se estender à zona de fronteira do Brasil com a Venezuela e a Guiana. Também é criticada constantemente pelos ministros a atuação de muitas ONGs na área. Os ministros do STF avaliam que o julgamento deve servir de parâmetro para uma nova disputa em curso envolvendo índios guaranis-caiuás e fazendeiros de Dourados, Miranda, Naviraí, Rio Brilhante e Maracaju, todos em Mato Grosso do Sul.
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