“Nós queremos a área contínua porque precisamos uns dos outros para viver”, resume Ivandro André, um dos líderes macuxi da reserva. Os índios que defendem a demarcação contínua afirmam que precisam ter liberdade de movimento para poder manter sua forma de vida.
Nesta semana, o STF vai discutir do ponto de vista jurídico as ações contra a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de homologar a reserva em 2005.
Além da discussão sobre as tecnicalidades do decreto presidencial, vão estar em debate em Brasília duas idéias distintas: Uma é a de que os índios precisam de uma vasta área de terras contínuas para poder viver, manter seus costumes e controlar o processo de transformação de sua cultura; a outra é que eles podem fazer isso em áreas menores em meio à integração com outro povos e que os direitos dos não-índios e de desenvolvimento regional têm peso semelhante ao direito indígena.
Um dos motivos que amplia a complexidade do processo em Raposa Serra do Sol é que até mesmo entre os índios se encontram respostas diferentes para essas questões.
Índios
A maioria dos índios da reserva estão organizados em torno do Centro Indígena de Roraima (CIR), principal defensor da demarcação contínua. O CIR é apoiado principalmente pela Igreja Católica e por ONGs internacionais, embora suas lideranças afirmem que são independentes.
Dentro da reserva há uma dissidência contra a demarcação contínua que se organiza na Sociedade de Defesa dos Indígenas Unidos do Norte de Roraima (Sodiur). A Sodiur tem apoio dos agricultores e do governo do Estado, embora também afirme independência.
Os índios ligados ao CIR, como Ivandro André, dizem que a presença de não-índios na região já causou conflitos e atrapalha as comunidades indígenas. Durante um encontro na vila Surumu para preparar a feira desta semana, o líder local Martinho Souza deu como exemplo o caso e um índio que estava caçando um veado.
Depois de atingida, a caça ainda conseguiu fugir e entrou em uma fazenda. Ao tentar ir atrás, o caçador acabou sendo atacado pelo fazendeiro.
Embora a caça e a pesca estejam perdendo importância econômica e na tradição entre os índios, eles sustentam que a locomoção e a comunicação entre as aldeias, as trocas comerciais, o sistema de plantio móvel e a própria expansão da população podem ser limitados pela presença de propriedades privadas no meio da reserva. “Esse sistema de ilhas pode atrapalhar muito a nossa vida”, afirma Souza.
Para Jonas de Souza Marcolino, um líder local ligado ao Sodiur, a convivência com os não-índios é mais benéfica do que problemática. “Nós convivemos juntos por muitos anos. É relativamente recente essa idéia de isolamento”, afirma ele. Jonas de Souza diz que a dissidência foi criada em um período em que parte dos índios começou a pregar um processo de isolamento total. Para ele, a criação de ilhas de produção dentro da reserva pode ajudar no desenvolvimento dos índios, que estão se tornando cada vez mais ativos economicamente.
Os dois lados trocam acusações sobre o que está por trás dos seus discursos. O CIR acusa “seus parentes”, como se chamam todos os índios, da Sodiur de estarem se vendendo para os agricultores e o governo do Estado. Eles também afirmam que o grupo é muito menor e menos representativo.
A Sodiur responde acusando o CIR de ser manipulado pela Igreja, indigenistas e ambientalistas. Para Jonas os índios da região são até um certo ponto “massa de manobra tanto para o governo como para os indigenistas”.
Poder
Assim como há diferentes opiniões, a realidade econômica dentro da reserva é bastante diversa. Segundo a Funai e os próprios índios, a maioria dos não-índios já deixou a região. Existem em torno de 200 aldeias ou vilas dentro da reserva, que podem ir desde um grupo muito reduzido de famílias até pequenos municípios. As comunidades de Raposa estão em diferentes estados de desenvolvimento e se concentram em diferentes atividades econômicas.
A criação de gado é uma das principais, ao lado das plantações e hortas. As estimativas variam entre 29 mil a 35 mil cabeças de gado hoje sendo controladas pelos indígenas. Há também uma parcela da população que ganha a vida como funcionário público, dando aulas ou cuidando dos postos de saúde federais. Esse grupo é a principal fonte de dinheiro vivo para as comunidades, que compram fora, além de comida em algumas ocasiões, produtos como sabão, sal e açúcar.
Para o governador do Estado, José de Anchieta Júnior, os índios dependem do apoio público para se desenvolver, mas podem representar uma barreira ao desenvolvimento da região. “A questão não é se a área ficará para índios ou não-índios. Essa área tem que ser aproveitada para o desenvolvimento do nosso Estado. Nós temos 22 milhões de hectares e 47% dessa área comprometida com reservas”, diz o governador.
“Essa visão dos antropólogos dessa necessidade de isolamento das comunidades indígenas é para mim uma visão distorcida. Na realidade isso cria verdadeiros zoológicos humanos”, afirma ele.
O antropólogo Paulo Santilli, um dos responsáveis pelos estudos que determinaram a homologação da reserva, não concorda. Segundo ele, a região rural mais povoada de Roraima é justamente a Raposa. “O restante da área rural do Estado tem uma densidade demográfica muito baixa, já que a maior parte da população está concentrada nas cidades. Não é verdade que há muita terra para pouco índio.”
Santilli também rebate a idéia de que os antropólogos e os índios querem se isolar. “Eles querem aumentar a produção, se desenvolver, mudar. E isso é natural. O que é importante é que eles sejam sujeitos do seu futuro, que tenham poder para determinar como vão se integrar e como vão mudar. E não que sejam forçados a isso.”
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