quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A demarcação deve ser em área contínua?


NÃO: 

Salvador Raza *

A decisão pelo Supremo sobre a Raposa Serra do Sol enfrenta quatro condições: (1) assegurar a integridade territorial frente a ameaças externas nascidas de vulnerabilidade que a demarcação contínua cria; (2) assegurar a exploração sustentada de riquezas naturais; (3) proteger a biodiversidade e o equilíbrio ambiental; (4) preservar a cultura, a estrutura social e os mecanismos primários de subsistência de povos indígenas de acordo com regras criadas pela política indigenista nacional. 

Essas condições estão alinhadas com legítimos interesses de segurança nacional, com interesses empresariais que fomentam o desenvolvimento regional, com interesses de preservação ambiental, que protege nosso patrimônio, e com interesse de caráter civilizatório dos indigenistas. O problema aloja-se na mútua exclusividade desses interesses, quando eles são alimentados por radicalismos nascidos de necessidades operacionais de cada alternativa. Há exageros nos requisitos operacionais militares pautados em cenários catastróficos e há exigências operacionais descabidas feitas pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) para a saída de todos os não-índios da região, dando a apenas 17 mil índios a propriedade de 1,7 milhão de hectares, comprometendo a existência de Roraima como Estado, pois, com a demarcação, 46% de suas terras serão reservas indígenas. 

A situação agrava-se quando esses radicalismos são fomentados por ONGs como a The Nature Conservancy (TNC), que alegadamente recebe dinheiro dos governos dos Estados Unidos, Reino Unido e França para financiar a identificação de áreas para exploração comercial por estrangeiros.

Na ausência de critérios que justifiquem consistentemente a demarcação contínua, apela-se para princípios genéricos e ameaça-se o uso da força para assegurar a alguns poucos indígenas prerrogativas desmedidas e descabidas frente aos interesses das outras partes. 

O Supremo não deve intimidar-se nem por essas ameaças nem pela possibilidade de sua decisão poder levar à revisão de outras reservas erroneamente dimensionadas. Ao decidir pela demarcação por ilhas, o Supremo estará desenhando um ponto de equilíbrio e compromisso entre as quatro alternativas, enquanto protege aos indígenas dentro da condição civilizatória aonde eles se alojam, tenha sido essa condição alcançada por contingência ou por opção, integrando-os na modernidade enquanto respeita sua cultura. Se o Supremo não temer tomar as decisões que lhe cabem, então o Estado não poderá ter receio de exercer o legítimo uso da força para evitar que a força da arrogância ideológica seja substituta da lei. 

* Fundador do Cetris - Centro de Tecnologia, Relações Internacionais e Segurança; especialista em defesa e estratégia

 

SIM:

Lucia Helena Rangel*

O conflito em torno da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol deveria ser um assunto superado desde que o presidente assinou a homologação em área contínua, conforme os estudos e procedimentos legais que normalizam as demarcações no Brasil. Mesmo assim, o STF acatou ação contestando o ato presidencial, o que desencadeou um debate nacional e internacional, mobilizando indígenas e todos aqueles que apóiam sua causa. Mobilizou também aqueles que desprezam a população indígena, aguçou o racismo e fez retornar o velho e desgastado ideário de que a presença indígena é estorvo ao desenvolvimento econômico. Acrescentou-se ao debate a ameaça à soberania porque a terra localiza-se em área de fronteira e, segundo os mais irados radicais, os indígenas poderiam formar uma nação independente, insurgente contra o Estado brasileiro.

Ora, se as terras indígenas pertencem legalmente à União, como pode o Estado ficar ameaçado? Como pode ser estorvo a produção familiar de alimentos, num mundo que carece disso? A produção das famílias indígenas, num estado como o de Roraima, representa movimentação comercial, abastecimento alimentar, além da subsistência de 20.000 pessoas que vivem na área. Como pode ser contestada a preservação ambiental conseqüente da demarcação contínua? A terra em questão é rica em biodiversidade, além de possuir as maiores jazidas de cassiterita e nióbio do Brasil, mais ouro, urânio, tântalo e até diamantes. Com a terra demarcada será muito mais exeqüível a proteção dessas riquezas.

Estorvo provocaram garimpeiros ilegais, madeireiros, criadores de gado e produtores agrícolas que molestaram os índios durante décadas, como fazem até hoje. A luta pela demarcação trouxe dignidade, organização social e política, prosperidade, orgulho e auto-estima aos indivíduos, famílias e povos.

O voto do ministro Carlos Ayres Britto levou em consideração todos os fatores envolvidos e foi considerado por alguns juristas como um dos mais brilhantes em toda história do STF. Antropólogos, juristas, indigenistas e cidadãos conscientes, ao lado dos povos indígenas que estão atentos ao julgamento de hoje, não têm dúvidas a respeito da demarcação contínua. Esperamos que a Constituição seja respeitada, que a sociedade compreenda que o melhor é existir a diversidade cultural e natural e que a pluralidade de necessidades concorra para a construção de uma ética no sentido de preservar a teia da vida. Vida natural e social que incluirá a todos e, em especial, os cidadãos indígenas, a quem devemos importantes aspectos de nossas raízes e com os quais possuímos uma dívida histórica, para cessar a violência de 500 anos. A demarcação contínua será o aceno de paz. 

* Doutora em antropologia pela PUC-SP e assessora do Cimi

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