domingo, 14 de dezembro de 2008

Índios começam a fazer projetos

Futuros donos da reserva decidem que o plantio de arroz será mantido em pequena escala. Moradores da área se queixam da indenização proposta pela Funai

 

Os quase 17 mil índios macuxi, taurepang, wapichana, pantamona e ingaricó, prováveis futuros donos da imensa reserva Raposa Serra do Sol, de 17 milhões de hectares, em Roraima, já decidiram que o plantio de arroz será mantido em pequena escala, apenas para subsistência. Eles começam a fazer planos após o julgamento sobre a posse da terra, realizado esta semana, no Supremo Tribunal Federal (STF). Embora a Corte tenha adiado uma decisão, depois do pedido de vista do ministro Marco Aurélio de Mello, oito dos 11 magistrados que compõem o Supremo já adiantaram que serão favoráveis aos índios e contra a presença dos arrozeiros na área.

A sinalização de uma decisão que atenda aos interesses dos índios não preocupa apenas os arrozeiros, mas também pessoas que, apesar de não terem o sangue indígena na veia, estão totalmente integradas àquela comunidade. De um total de 311 ocupantes considerados ilegais da reserva, que estavam na área no início deste ano, 51 simplesmente se recusam a negociar com o governo indenizações propostas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Há R$ 5 milhões depositados em juízo pelo órgão para ressarcir o grupo. No que depender dessas pessoas, entretanto, será preciso muito mais para retirá-las do local.

 

Queixas

Dona de uma mercearia na Vila Surumu, no centro de Raposa, a comerciante Alaíde Rebouças diz que não sai da área por menos de R$ 100 mil. A Funai ofereceu a ela R$ 25 mil. “Levo uma vida tranqüila, não incomodo ninguém, e minha família está há décadas na reserva. Antes mesmo de muitos índios. É segregação racial. Se querem me tirar, que paguem decentemente”, exige Alaíde. O desempregado Antônio Almeida Lima é dono de uma pequena casa e de um quiosque na vila. No início do ano, foi preso por vender bebida alcoólica. Passou nove meses detido e, quando voltou, o local do quiosque havia sido transformando em um posto da Polícia Federal e da Força Nacional.

Querendo evitar problema, Lima, que ainda responde ao processo, deu por perdido o quiosque. Pela sua casa, a Funai ofereceu R$ 15 mil. Mas ele quer cinco vezes mais. Segundo o pastor Oséas Ribeiro, o órgão indigenista ofereceu R$ 20 mil pelo prédio de sua igreja, a Assembléia de Deus. “A partir de R$ 60 mil dá para conversar”, adianta o pastor. Há também dezenas de casos como o de Nilo Carlos Coelho, que é branco e casado com a macuxi Aldenora dos Santos. Eles têm dois filhos e a mulher espera o terceiro. “Se tiver que sair daqui, será uma grande discriminação. Vim buscar uma mulher indígena, por quem me apaixonei, casei e tive meus filhos. Será que isso não prova que estou integrado a esse povo?”, questiona.

Decididos a não continuar as plantações de arroz, devido aos problemas ambientais provocados pela produção em larga escala, os índios planejam reflorestar a área, investir na caça e pesca e, quem sabe, explorar o local como ponto turístico. “Temos parques, matas, cachoeiras. Toda uma beleza natural que pode atrair turistas, desde que entrem legalmente, com autorização. Nada de clandestinos na Raposa, nunca mais. Isso vai acabar”, afirma Dionito José de Souza, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR).

 

 

Visão do CORREIO

Raposa Serra do Sol

 

Lastreada em oito votos dos 11 que compõem a corte, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que manteve a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, põe fim a três décadas de conflito na área. O reconhecimento da posse da terra às comunidades silvícolas de cinco etnias em 1998, homologado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2005, não fez cessar as hostilidades entre agricultores de arroz instalados na região desde 1978 e os índios.

Ano passado, a Polícia Federal (PF) foi acionada para expulsar os arrozeiros, dispostos a permanecerem no local a despeito do decreto homologador de 2005. Todavia, o STF suspendeu a ação da PF mediante concessão de medida liminar em mandado de segurança impetrado pelos plantadores. O julgamento de mérito da questão deveria ter ocorrido em reunião plenária da Corte em agosto deste ano. Mas, conhecido o voto do relator, Carlos Ayres de Brito, pela demarcação contínua, o julgamento foi suspenso em razão de pedido de vista do ministro Carlos Alberto Direito. Só na quinta-feira se retomou o julgamento, mantido o voto do relator — repita-se — por oito dos 11 titulares do STF.

Mas a solução do problema pela Corte Suprema vai além dos pressupostos legais admitidos na demarcação e no ato que a homologou. Por iniciativa do ministro Carlos Alberto Direito, de logo apoiada pelos outros sete que votaram, impuseram-se 18 condições ao exercício dos direitos de posse pelos grupos indígenas. Não lhes serão permitidos a exploração de recursos energéticos, de garimpos, cobrança de pedágios nas estradas da região ou arrendar terras. Também não poderão caçar, pescar ou criar gado nas áreas de reserva florestal.

A mais importante das condicionantes colhida no próprio texto de Direito destaca que “o usufruto do índio sobre a terra indígena estará sujeito sempre a restrições, toda vez que o interesse público e a segurança nacional estejam em jogo”. Segue daí que as Forças Armadas e a Polícia Federal estão autorizadas a agir na região sempre que for necessário independentemente de consentimento da Funai.

Na Constituição, o artigo 20, inciso XI, assegura que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” são bens da União. E o artigo 231, § 3º, estabelece que a pesquisa e a lavra de minerais e de recursos hídricos em terras indígenas dependem de autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas.

As cautelas adotadas pelo STF, na forma proposta por Carlos Alberto Direito, reforçam, contudo, o princípio da soberania sobre todos os tratos do território nacional. Deixam bem claro que os grupos autóctones são usufrutuários das glebas, que podem usar em caráter permanente e com a preservação de suas tradições e ritos culturais. Não são enclaves autônomos postos ao largo das leis e dos controles do Estado brasileiro.

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