quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Raposa Terra do Sol: demarcação contínua tem maioria

Luiz Orlando Carneiro, JB Online

 

BRASÍLIA - Está formada uma maioria de oito dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal a favor da demarcação contínua da reserva indígena Raposa/Serra do Sol, com ressalvas destinadas a garantir a presença da União na área de 1,7 milhão de hectares do estado de Roraima, na instalação e manutenção de serviços públicos; na atuação, quando necessária, das Forças Armadas e da Polícia Federal, sobretudo na faixa fronteiriça com a Venezuela e a Guiana; e na preservação ambiental do Parque Nacional do Monte Roraima (6,7% da superfície da reserva). Os índios terão o usufruto de toda a região para plantio, caça e pesca, com restrições referentes, principalmente, à exploração de recursos minerais e hídricos.

Os não-índios que habitam, com suas famílias, os três municípios e vilas localizados na reserva podem lá continuar, conforme já previa o decreto demarcatório. Devem deixar a Raposa/Serra do Sol, segundo o advogado-geral da União, José Antonio Toffoli, apenas os seis arrozeiros que insistiam em permanecer na área demarcada, entre os quais o ex-prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero.

Na sessão da manhã de ontem – na retomada do julgamento da ação popular-piloto proposta pelos senadores roraimenses Augusto Botelho (PT) e Mozarildo Cavalcanti (PTB) contra o decreto demarcatório de 2005 – o ministro Menezes Direito leu o seu longo voto-vista de duas horas, basicamente na linha do voto do relator, Ayres Britto, proferido em agosto, no início do julgamento da ação. Naquela ocasião, Britto afirmou que somente o “formato contínuo” de qualquer demarcação de área indígena atendia plenamente à norma constitucional que reconhece aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las” (Artigo 231). Direito – que pedira vista na sessão de 27 de agosto – acrescentou 19 exigências de ordem prática, a serem cumpridas pelos índios.

 

Pedido de vista

O ministro Marco Aurélio – que é o oitavo a votar, pela ordem de antigüidade – pediu vista antecipada dos autos, logo depois do voto de Direito, afirmando que queria “refletir mais sobre o tema e chegar a uma conclusão”, não lhe importando se viria “a somar na corrente majoritária ou na minoritária”. Mas a maioria dos ministros – com exceção de Celso de Mello – resolveu antecipar os seus votos, deixando vencido, por antecipação, Marco Aurélio. Quando ele trouxer o seu voto, no início do próximo ano, provavelmente, votarão os ministros Celso de Mello (decano) e o presidente Gilmar Mendes.

Menezes Direito, depois de aprovar a regularidade do processo demarcatório, iniciado em 1977, afastou logo a pretensão dos recorrentes com relação às atividades econômicas de não-índios na região – muitos com títulos de posse precários concedidos há muitas décadas – sob o argumento de que a expressão “terras que (os indígenas) tradicionalmente ocupam”, constante do artigo 231 da Constituição, para fins de demarcação de suas reservas, deve ter como “marco” a data em que foi promulgada a atual Carta – 5/10/1988. Assim, os produtores de arroz, que representam 6% da economia de Roraima, não têm direito adquirido em face da Constituição.

Direito não levou também em conta a reclamação dos autores da ação contra a extensão da reserva (7,7% da superfície do estado, equivalente à do estado de Sergipe e à metade da Bélgica, como ele mesmo destacou). Mas ressaltou que a “relevância” dos direitos dos índios – sobretudo num território situado em zona de fronteira internacional que abriga o Parque Nacional do Monte Roraima – “não pode ser absoluta”.

 

População indígena terá de respeitar condições

O ministro Menezes Direito propôs, ao todo, 18 “condições” a serem obedecidas pela população indígena da Raposa/Serra do Sol (19 mil, de cinco etnias, representando 4,8% da população de Roraima). Entre elas, algumas como: a garantia de que o usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser afastado sempre que houver interesse público da União; tal usufruto não abrange a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, nem o direito à garimpagem.

Outras condições apresentadas pelo ministro envolvem também a obrigatoriedade de que o uso das terras pelos índios fique condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional (a instalação de bases, unidades e postos militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas e o resguardo das riquezas ficam a cargo do Ministério da Defesa e do Conselho de Defesa Nacional); não pode ser impedida a instalação, pela União, de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos, especialmente os de saúde e de educação; o uso da reserva pelos índios fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal.

Pela lista de condições de Menezes, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração do Parque Nacional do Monte Roraima e o trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido no parque, nos horários e condições estipulados pela administração. Mas deve ser admitido o ingresso, trânsito e permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai.

 

Sem cobranças

O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios, de acordo com o voto de Menezes, não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas. As terras indígenas também não serão objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico. É vedada, também, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa; as terras indígenas e suas rendas terão isenção tributária; os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.

No entanto, Direito fez críticas à Funai nos processos de demarcação de reservas, sustentando a necessidade de que os laudos sejam assinados, pelo menos, por três antropólogos, para evitar que eventuais preconceitos de um só determinem todo um processo demarcatório. Também advertiu que o STF deve “deixar claro” que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, do qual o Brasil é signatário, e que, freqüentemente, tem servido de inspiração para laudos assinados por antropólogos da Funai, não pode colidir com as normas constitucionais que consagram a soberania e o princípio federativo. Ou seja, reservas indígenas não podem ser vistas como “nações”.

Os ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes (que ainda não votou) fizeram também críticas severas a interpretações dadas à Declaração da ONU. Os votos de Ayres Britto (proferido em agosto) e o de ontem, de Menezes Direito, foram seguidos – com observações diversas – pelos ministros Cármen Lúcia (em parte), Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso e Ellen Gracie.

O Brasil tem, conforme levantamento feito pelo ministro Menezes Direito, 402 áreas indígenas já registradas e 21 em processo de registro. Há ainda 24 já homologadas. No total, segundo ele, há 534 terras indígenas, não incluídas aquelas ainda em estudo pela Funai.

A extensão total dessas áreas é de 1.099.744 quilômetros quadrados (12,92% de todo o território nacional), sendo que 187 delas se localizam em faixa de fronteira, enquanto 45 coincidem com áreas federais de conservação ambiental. (L.O.C.)

 

Arrozeiros permanecem até que julgamento seja concluído

Sete ministros votaram, ontem, pela cassação imediata da liminar, concedida em abril, que garantiu a permanência dos produtores de arroz (arrozeiros) na reserva indígena, até que o STF concluísse o julgamento da ação popular contra a legalidade da demarcação contínua da área. Ellen Gracie, Cezar Peluso, Cármen Lúcia, Ayres Britto, Ricardo Lewandowski, Eros Grau e Joaquim Barbosa pronunciaram-se pela suspensão dos efeitos da liminar.

Contudo, como, formalmente, o julgamento não foi encerrado, os arrozeiros poderão ficar na região até que Marco Aurélio apresente o seu voto já vencido, e se pronunciem os ministros Celso de Mello e o presidente Gilmar Mendes. Chegou a haver um bate-boca entre Marco Aurélio e o relator Ayres Britto, este insistindo que a questão já estava resolvida e não teria mais sentido a manutenção da liminar. O presidente do STF decidiu aguardar a conclusão oficial do julgamento da ação.

 

Terno e gravata

Prefeitos e vereadores de várias etnias indígenas foram impedidos ontem de entrar no plenário do STF. Os indígenas foram barrados porque não estavam de terno e gravata, como determina o protocolo da Corte.

Indignados, os prefeitos e vereadores apelaram à Fundação Nacional do Índio (Funai) para que pudessem acompanhar de perto o julgamento. Porém, a fundação foi informada pelo cerimonial do STF que havia apenas 16 lugares destinados aos indígenas que estivessem utilizando seus trajes e pinturas típicos.

– Isso não poderia ocorrer – protestou o prefeito de São João das Missões (MG), José Nunes (PT), da etnia xacriabá. – Nós viemos aqui para acompanhar o julgamento e agora somos impedidos de entrar porque não estamos com gravata.

O novo adiamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do julgamento sobre a demarcação de terras na reserva Raposa Serra do Sol (RR) não agradou o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Mesmo com o placar favorável à demarcação contínua – o que favorece os indígenas – a opinião do conselho é de que o adiamento apenas prolongará os conflitos que já ocorrem há anos.

– Não se pode brincar assim como o ministro (Mello) está brincando com a vida dos povos indígenas – afirmou Júlio José de Souza, índio da etnia macuxi que vive na reserva. – Aumenta ainda mais nosso sofrimento, isso não é necessário. 

(L.O.C. e agências) 

 

Nenhum comentário: