Muita atenção tem sido dada a um possível calote em cadeia de US$ 5 bilhões que o Brasil sofreria dos governos da Venezuela, da Bolívia e do Paraguai, além daquele que já está anunciado pelo Equador. É claro que esta circunstância gravíssima e penosa não ocorreu ainda, tratando-se por ora apenas de uma possibilidade ou, se preferirem, de uma probabilidade. Mas a questão-chave é: como chegamos a este ponto?
Nos anos 1970 e 1980, o Brasil fez alguns empréstimos internacionais que não pode cobrar. Com Moçambique, há 20 anos, acabamos perdoando uma dívida de certa importância, em razão de extrema insolvência desse país, assim como fizeram todos os integrantes do Clube de Paris. Houve o famoso caso da Polônia, antes ainda, em que financiamos um programa de desenvolvimento de minas de carvão que nunca se materializou. Aí, porém, houve um acordo dificilmente negociado que acabou sendo um pagamento ao Brasil. Houve também o caso de Angola, país ao qual emprestamos vultosas somas para financiamento de obras públicas. Aí também negociamos uma regularização dos pagamentos por meio de fornecimentos de petróleo angolano.
No caso da América do Sul, é justificável que tenhamos feito empréstimos para projetos de infra-estrutura em nossos vizinhos. Afinal, eles são parte integrante da política externa brasileira para a região desde os anos 70, quando financiamos a Hidrelétrica de Itaipu. Na década passada, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, surgiu a Iniciativa de Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), um processo multissetorial que pretende desenvolver e integrar as áreas de transporte, energia e telecomunicações da América do Sul, em dez anos. Ela foi criada na primeira Cúpula de Presidentes da América do Sul realizada em Brasília em 30 de agosto de 2000. Trata-se de um trabalho que avança e conta com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Corporação Andina de Fomento (CAF) e dos governos envolvidos. Na realidade, não pode haver integração econômica e comercial na nossa região sem avanços na integração física, com a criação de estradas, portos, hidrovias, hidrelétricas, gasodutos. O Brasil tem evidente interesse em que esta integração seja fomentada, pois a região é nosso palco histórico e nossa primeira vizinhança.
Mas, voltando à questão inicial, como chegamos ao ponto de estarmos ameaçados de um calote generalizado?
O governo brasileiro nos últimos anos colocou tal prioridade na integração econômica sul-americana e na solidariedade regional que aceitou subordinar tudo o mais a esse objetivo. Por isso vem tolerando atitudes negativas, expropriações e outras agressões, com benevolência. A colheita dos resultados desta posição começou em 2006, quando o governo de Evo Morales, instruído pelo venezuelano Hugo Chávez, enviou o Exército para ocupar as instalações da Petrobrás na Bolívia. O governo brasileiro não moveu uma palha, nem antes nem depois, para evitar esse fato lamentável. Com isso se criou um precedente que agora encontra novo episódio no Equador e amanhã pode gerar a reação em cadeia já descrita como uma ameaça de US$ 5 bilhões.
E, agora, o que fazer?
Em primeiro lugar, dentro das normas jurídicas e dos preceitos da boa convivência internacional, é vital contestar vigorosamente a ação do governo equatoriano. É bem sabido que o Brasil não pode e não deve ser truculento com nossos vizinhos. Desde o Barão do Rio Branco nossa política externa se tem pautado pela não-intervenção nos assuntos internos dos outros, pelo respeito ao direito internacional, pela solução pacífica de controvérsias, e tudo isso é sagrado. Mas a renúncia à defesa dos interesses nacionais em nome da integração regional não é um preço aceitável. Nenhum grande país renuncia a seus interesses nacionais. A Alemanha e a França aceitaram em 1958 integrar-se à Comunidade Européia abrindo mão - em favor de instituições supranacionais como a Comissão Européia ou o Tribunal Europeu - de diversas prerrogativas, como a negociação de acordos comerciais com terceiros, a palavra final em importantes questões judiciárias, a regulamentação ambiental, etc... Fizeram-no porque haviam combatido em três grandes guerras e não queriam mais voltar a fazê-lo. Mas, como qualquer pessoa que tenha negociado com os europeus sabe, jamais deixaram de defender tenazmente os seus interesses dentro da União Européia e fora dela, haja vista, por exemplo, a permanência do exacerbado protecionismo agrícola, que tanto nos prejudica e que é a maior prioridade francesa, mesmo contra a posição dos ingleses, dos escandinavos e dos próprios alemães.
Há um prenúncio tímido de reação, com a convocação para consultas do embaixador em Quito. A questão não é trivial, nem se pretende aqui que seja elementar conduzir esta delicada questão com uma receita mágica. São desafios novos que o Brasil enfrenta hoje e, provavelmente, vai enfrentar em maior escala amanhã. É muito importante que haja uma reflexão e um debate, que não se restrinja a quatro paredes em Brasília, sobre como nosso país deve relacionar-se com seus vizinhos, em particular com aqueles que têm hoje governos estridentes e pouco afeitos a respeitar a ordem jurídica interna ou internacional. Em nosso tempo, a política externa já não pode ser conduzida de forma opaca.
A opinião pública brasileira está hoje atenta a estas questões. Por isso mesmo, aguarda com atenção os próximos capítulos.
Luiz Felipe Lampreia, professor de Relações Internacionais da ESPM, foi ministro das Relações Exteriores (1995-2001)
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