Para especialistas, questões jurídicas tornam-se diplomáticas pela ausência de mecanismo para mediar negócios
Talita Eredia e Gabriel Pinheiro
SÃO PAULO - A tensão entre os governos esquerdistas da América do Sul e as empresas brasileiras, que ganhou destaque nos últimos dias com a expulsão da construtora Norberto Odebrecht do Equador, é conseqüência da falta de regulamentação dos acordos comerciais entre o Brasil e estes países. "A presença brasileira na região se deu com um nível de cobertura institucional muito baixo, sem a preocupação de arranjos regionais. Quando você não tem instituição para mediar as negociações comerciais, uma questão jurídica, contratual, ganha caráter diplomático", segundo afirmou ao estadao.com.br Ricardo Sennes, professor de Relações Internacionais da PUC-SP.
A queda de braço com as grandes empresas brasileiras nestes países não é nova. No ano passado, a Bolívia ocupou militarmente as instalações da Petrobras no país para garantir a nacionalização da infra-estrutura da estatal brasileira. Neste ano, o Equador expulsou a Odebrecht alegando falhas na construção de uma hidrelétrica e ameaça fazer o mesmo com a Petrobras caso ela não aceite deixar o status de exploradora de bens para prestadora de serviços do governo equatoriano. Sennes aponta que a região vê o Brasil como um país muito forte e que age de maneira estratégica, politicamente orientada, nunca em nome de uma agenda mais ampla de cooperação. Porém, essa visão não chega a caracterizar um imperialismo brasileiro.
"Seríamos um grande país que age voltado ao seu próprio interesse. A percepção de cada governo sobre o Brasil é variável, desde o Equador até o Uruguai. No Uruguai, nós temos uma visão muito mais positiva, na Argentina é mediana, na Bolívia é muito negativa. Para eles, somos um país muito poderoso proporcionalmente na região, e quando agimos é para maximizar nossos próprios interesses", aponta o especialista.
A falta de instituições para mediar as discussões entre as empresas que se instalam nestes países e os governos contratantes é que abre brechas para a tensão entre Estados. "Se existisse uma instância para mediar, como você tem numa situação de controvérsia em alguns arranjos, o presidente não precisa se envolver. Um governo faz uma avaliação, sem especificar critérios, de que a obra foi obra ou ruim, toma uma decisão unilateral e comunica o governo brasileiro, que fica preocupado e manda outra mensagem governamental. Assim, um problema que poderia ser de ordem contratual e deveria ser tratado âmbito judicial vira um problema político bilateral", aponta Sennes.
Exploração política
Os países que são ricos em recursos minerais estratégicos - como gás, petróleo, cobre e estanho - atraem investimentos estrangeiros. Porém, no caso da Bolívia, Equador e Venezuela, as riquezas naturais foram atreladas às propostas de Constituições com aspirações socialistas que os governos impulsionam. Para o professor de História e Relações Internacionais da Unesp, Luis Fernando Ayerbe, a crítica aos governos neoliberais nestes países provocou a revisão de contratos e colocou em xeque a atuação das empresas internacionais, gerando discussão. "Agora, os governos buscam uma maior afirmação nacional e uso desses recursos sob o controle do Estado. Por isso que há todo esse problema", afirma.
Ayerbe aponta ainda que estes países, que dependem bastante de seus recursos energéticos, adotam essa postura para barganhar com o Brasil, para obter vantagens. "O Brasil não pode ser visto como imperialista, porque sempre teve uma postura de liderança na resolução dos problemas quando houve crises de governabilidade."
"O Brasil atingiu um patamar de desenvolvimento que inclui grandes empresas, que se tornaram multinacionais. Odebrecht, Petrobras, Vale, que passaram a atuar internacionalmente, disputar contratos. Como com qualquer empresa, às vezes há problemas em construções, em entrega de obra, em financiamento. Até aí, são problemas da empresa com quem a contratou. Não é um problema do Brasil", explica o professor. "O que está acontecendo no caso do Equador é que justamente coincidiu com a eleição para o referendo constitucional, então a questão da Odebrecht foi utilizada pelo presidente Rafael Correa de uma forma politizada. E isso está repercutindo nas relações com o Brasil. Existe deturpação do problema", ressalta.
O especialista Ricardo Sennes lembra ainda de que o modo como os bolivianos fizeram a nacionalização da Petrobras, com invasão militar, foi muito mais de uso político do que efetivo, já não existia nenhum tipo de ameaça no local. Porém, ele aponta que, considerando a história do Brasil com seus vizinhos e sua influência na região, esse tipo de conflito já era esperado. "Só alguém muito inocente acharia que a entrada do Brasil nesses países seria vista como salvação, como um favor."
"O Brasil é muito prepotente em suas relações regionais, e essa prepotência não é de hoje, é histórica. O Brasil tem esse tipo de ação até mesmo pelo seu tamanho, poder. E hoje se transformou no que a gente está vendo: o BNDES, a Petrobras, a Eletrobrás, as grandes empresas nacionais, a Vale, a Gerdau, a Odebrecht tem um poder de barganha muito forte na região. E isso vai aumentar. O que chama a atenção é a surpresa com que esse fenômeno é tratado", diz Sennes.
Mecanismo de mediação
O nível da institucionalização das relações do Brasil com os seus vizinhos é apontado como a principal brecha para que as disputas com as empresas ganhem caráter diplomático. Efetuadas sem arranjos regionais sólidos, as negociações têm caráter totalmente privados, contratuais, sem acordos de investimentos. Como a presença brasileira tende a aumentar, por conta da própria economia do país, a questão será como definir uma estratégia para evitar que os problemas comerciais se transformem em diplomáticos.
Sennes aponta que uma saída seria a aplicação de mecanismos para mediar as negociações controversas. Ele cita o caso entre os governos brasileiro e argentino, que criaram um mecanismo de adaptação competitiva, um acordo para a busca de ajustes necessários, seja por câmbio, por política industrial, que dá as bases para a adoção temporária de salvaguardas sem que isso vire um problema político. "Esse tipo de ação - que nesse caso é bilateral - poderia ser ampliada em caráter regional, mas obviamente dependeria de uma mudança da visão do Brasil da região. Quanto menos mecanismos institucionais existirem, mais haverá espaço para a politização destas questões", disse.
Nenhum comentário:
Postar um comentário