Parafraseando lorde Palmerston, primeiro-ministro e ministro do Exterior inglês na metade do século 19, a defesa do interesse brasileiro deveria ser o único objetivo do Ministério das Relações Exteriores. Ocasionalmente, pode ser apropriado adotar uma atitude magnânima, se essa for a única maneira de proteger nosso interesse, acrescentou Malcom Rifkind, ministro do Exterior britânico durante minha gestão à frente da Embaixada em Londres.
A política externa brasileira na América do Sul parece ignorar esses princípios elementares. A compreensão, a solidariedade e a paciência estratégica levam à aceitação de qualquer atitude, mesmo hostil ou inamistosa, de nossos vizinhos. Esses atos são absorvidos com naturalidade em nome da diplomacia da generosidade, que parece não entender o efeito das transformações políticas, econômicas e sociais por que passa a região e a mudança de percepção em relação ao Brasil.
A nova ênfase visando a privilegiar iniciativas bilaterais, dada a paralisia do processo de integração, vem apresentando parcos resultados: a generosidade não fez desaparecerem demandas, reservas, ressentimentos e, agora, está sendo utilizada para inflamar a opinião pública com ataques ao imperialismo brasileiro.
O fato é que para preservar o processo de integração comercial, que, na realidade, só existe na retórica dos governantes sul-americanos, o Brasil aceitou, na Bolívia, a nacionalização das refinarias da Petrobrás e o aumento do preço do gás. Propôs o ingresso da Venezuela no Mercosul e agora tenta acomodar a falta de cooperação de Caracas para negociar as condições de seu ingresso. Aceita discutir com o Paraguai um tema tão sensível como Itaipu e observa sem maior reação as invasões de terras e os atentados à vida de fazendeiros brasileiros que vivem naquele país, promovidos pelo MST paraguaio, ajudado pelo MST brasileiro. Abúlicos, aceitamos que a Argentina imponha restrições a empresas brasileiras e ao comércio bilateral e reative acordo de salvaguardas, contrário às regras do Mercosul, que vai ser aplicado sem ter entrado em vigor no Brasil.
Nos últimos dias, o Brasil colheu mais um resultado da política de generosidade. O governo do Equador, alegando irregularidades na construção de uma hidrelétrica, em ação desproporcional à importância da questão, decidiu expulsar duas empresas brasileiras (a companhia construtora e outra, estatal) e cancelar outros contratos que nada tinham que ver com o problema, solucionável por negociação ou arbitragem. Na ocasião, o presidente do Equador anunciou que não iria pagar o empréstimo tomado do BNDES, amortizado por meio dos bancos centrais da região. Seguindo a política de compreensão e de generosa boa vontade com nossos vizinhos, o Itamaraty a tudo assistiu sem esboçar reação na defesa da empresa, apenas adiou missão ministerial que iria abrir novos créditos para o Equador.
Agora, o presidente Rafael Correa oficializou o calote da dívida. O Itamaraty finalmente reagiu, informando que “recebeu com preocupação” a notícia da decisão do governo equatoriano de impetrar juízo arbitral na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional com vista a suspender o pagamento da dívida com o BNDES, relativa ao financiamento da hidrelétrica.
No comunicado oficial da Chancelaria se reconhece, ingenuamente, que a decisão do governo equatoriano foi anunciada em evento público sem prévia consulta ou notificação ao governo brasileiro e que a natureza e a forma de adoção das medidas tomadas pelo governo do Equador não se coadunam com o espírito de diálogo, de amizade e de cooperação que caracteriza as relações entre o Brasil e o Equador.
Para dar uma satisfação à opinião pública, cada vez mais crítica e impaciente com a maneira como as relações com nossos vizinhos vêm sendo mantidas, o Itamaraty chamou para consultas o embaixador em Quito. O gesto, mais simbólico do que efetivo, é um avanço nas posições adotadas até aqui, mas não representa uma mudança de posição. O aparente endurecimento da posição do governo brasileiro pode ser explicado mais pela irritação do presidente Lula, cuja imagem foi arranhada pelo desafio do líder equatoriano, do que por motivações de política externa. A Petrobrás, depois de ameaçada de expulsão, aceitou as condições impostas pelo Equador para assinar um novo contrato, sem nenhuma garantia de cumprimento. É possível prever que a reação do governo brasileiro se vai limitar à convocação do embaixador e que insista na retomada do diálogo sempre conciliador. Vamos ver se “o comércio bilateral vai acabar”, como prometeu o Itamaraty, em arroubo retórico.
A retirada do embaixador chega tarde e é muito pouco. Deveria ter sido a primeira providência quando o governo boliviano ocupou manu militari as refinarias da Petrobrás. Depois de tudo o que aconteceu, e mesmo após a expulsão de empresa construtora privada, o governo brasileiro está abrindo linhas de crédito de mais de US$ 100 milhões e a Petrobrás voltou a investir na Bolívia.
Ninguém está pregando medidas de força ou de retaliação contra atos contrários a empresas privadas e estatais brasileiras. O que se espera do Itamaraty é a defesa dos interesses nacionais, exigindo o respeito à lei e aos acordos e tratados em vigor.
Até quando Brasília permitirá que ações ou omissões de nossos vizinhos na defesa do que eles entendem ser de seu interesse sejam toleradas por nossa diplomacia, em nome do que o partido no poder entende ser o interesse brasileiro? A política da generosidade tem acarretado a perda de nossa influência e essas seguidas concessões são percebidas como um sinal de fraqueza. O Brasil está na defensiva, sem estratégia e a reboque dos acontecimentos.
Rubens Barbosa, consultor de negócios, foi embaixador em Washington e em Londres
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