A demarcação de reservas indígenas em Roraima faz voltar ao debate público a controvertida decisão do atual governo de ratificar a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas.
O referido documento, negociado nas Nações Unidas em 1993, levou quase 15 anos para ser aprovado, com quatro votos contra e onze abstenções. Canadá, EUA, Austrália e Nova Zelândia, com populações indígenas significativas, votaram contra. O Brasil, nas mesmas condições, votou a favor (Celso Amorim, como ministro das Relações Exteriores, assinou a Declaração em 1993 e a ratificou em setembro de 2007).
O governo australiano, para justificar seu voto negativo, afirmou enfaticamente que a Declaração outorga direitos às populações indígenas que conflitam com o resto da população e com o marco constitucional dos países democráticos. A Austrália expressou sua oposição, em especial, pelo emprego do termo autodeterminação por poder colocar em perigo a integridade territorial do país.
A demarcação das terras indígenas, de forma contígua, no Norte de Roraima, em região fronteira à Venezuela, suscita, entre outras, duas questões que têm relação direta com a referida Declaração: a questão de soberania na faixa de fronteira e a possibilidade de criação de uma nação indígena (ianomâmi) nos dois lados da fronteira.
Levando em conta o disposto no artigo 22 da Constituição Federal de 1988, segundo o qual compete à União legislar sobre os povos indígenas, a primeira dúvida que surge é quanto à compatibilidade da Declaração com os preceitos constitucionais vigentes.
Embora registre expressamente que nenhum de seus dispositivos autoriza ou fomenta qualquer ação visando a violar ou a reduzir, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados soberanos e independentes (artigo 46), a Declaração trata os povos indígenas como entidades políticas independentes dos Estados.
Com a prerrogativa de autodeterminação, os povos indígenas podem decidir livremente a sua condição política, com direito à autonomia e ao autogoverno nas questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, assim como em relação aos meios para financiar suas funções autônomas(artigos 3 e 4). Toda a pessoa indígena tem direito a uma nacionalidade (artigo 6), que se presume possa ser diferente da brasileira.
Não se desenvolverão atividades militares nas terras ou territórios dos povos indígenas, a menos que uma razão de interesse público pertinente o justifique, ou que os povos indígenas interessados o aceitem ou solicitem livremente. Os Estados terão de consultar os povos indígenas interessados, antes da utilização de suas terras ou territórios para atividades militares (artigo 30).
Segundo a Declaração, os povos indígenas têm o direito de desenvolver contatos, relações e cooperação, inclusive políticos, com outros povos indígenas além-fronteiras (artigo 30).
O território da reserva indígena em Roraima, demarcada pelo governo federal, é contíguo à outra, em território venezuelano. As duas, somadas e fundidas em uma só, sem solução de continuidade, poderiam formar um enclave entre os dois países, com foros de Estado independente que poderia dispor de instituições políticas (artigo 5) próprias.
Fala-se muito da internacionalização da Amazônia. O relator da ONU para direitos indígenas visitou Roraima. A Declaração pode ser vista como um prenúncio indireto dessa internacionalização, ao estabelecer, com o apoio da comunidade internacional - inclusive do governo brasileiro -, que os direitos dos povos indígenas são objeto de preocupação e responsabilidade internacionais.
Os temas do controle territorial e da perspectiva de criação de uma nação indígena independente dentro do Estado brasileiro adquirem, assim, um caráter grave que tem de ser examinado sob a ótica da segurança nacional. O Congresso, que aprovou a Constituição de 88 e ratificou a Declaração da ONU, e o Supremo Tribunal Federal, que está julgando a questão da demarcação das terras no Norte de Roraima, deveriam reexaminar com cuidado essa questão.
Do ponto de vista do interesse nacional, a defesa da integridade territorial e a da nacionalidade aconselham uma atitude firme do governo. A delimitação de áreas indígenas talvez devesse avançar apenas até a faixa de fronteira. Com isso se atenderia às duas preocupações quanto à integridade territorial e aquela da nacionalidade.
RUBENS BARBOSA é presidente do Conselho de Comércio Exterior da Fiesp
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